Das mãos de lideranças do povo
indígena Mura, a Justiça Federal do Amazonas recebeu esta semana o primeiro protocolo
de consulta elaborado por uma etnia brasileira a partir de processo judicial.
No documento, o povo Mura reforça sua identidade enquanto nação indígena e
estabelece procedimentos de consulta prévia, livre e informada em caso de
projetos de empreendimentos com impactos sobre as comunidades mura das cidades
amazonenses de Autazes e Careiro da Várzea, com base na Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Povos como os Wajãpi, Waimiri
Atroari, Kaiapó e Yanomami já possuem seus protocolos de consulta formalizados,
todos eles elaborados a partir de iniciativa dos próprios indígenas, sem a
participação da Justiça. No caso dos Mura, a construção do protocolo entregue
em audiência realizada na última segunda-feira (12) é resultado de acordo
obtido pelo Ministério Público Federal (MPF) com a empresa Potássio do Brasil,
em ação apresentada pelo órgão para garantir o direito de participar de
consulta livre e informada sobre o licenciamento para estudos de exploração de
minérios e instalação de estrutura rodoviária e portuária em terras indígenas
ocupadas tradicionalmente pelo povo Mura, em Autazes.
Durante a audiência de entrega do
documento, várias lideranças mura manifestaram a satisfação pela conclusão do
protocolo de consulta e ressaltaram a importância do documento não só para a
garantia do direito à consulta prévia nos moldes previstos pela OIT, mas também
para a retomada e fortalecimento da cultura daquele povo indígena. “A principal
pergunta do protocolo, quem somos nós, deixou claro e registrado para outros
povos indígenas, para os brancos e até para nós mesmos nossa identidade, aquilo
que somos e como queremos ser respeitados. Nossos ancestrais também estavam
presentes nas tomadas de decisões, sentimos isso quando ficamos juntos, decidindo”,
disse, emocionado, o cacique Erton Mura, da aldeia Santo Antônio, no município
de Careiro da Várzea.
O próximo passo do processo – a
adoção dos procedimentos pela Potássio do Brasil para realizar efetivamente a
consulta conforme o protocolo apresentado pelos indígenas – ainda é motivo de
apreensão por parte de lideranças que se manifestaram na audiência. O cacique
José Roberto, representante de uma das aldeias mura do município de Autazes,
afirmou que as comunidades exigirão o respeito ao protocolo de consulta pela
empresa para saber, exatamente, os benefícios e malefícios do projeto para os
indígenas. “Estamos em luta para garantir a comida e a sobrevivência dos nossos
parentes. Queremos uma consulta bem informada para que nenhum parente indígena seja
enganado”, ressaltou.
Diante de dezenas de indígenas,
representantes do MPF, da Fundação Nacional do Índio (Funai), da empresa
Potássio do Brasil e do governo do Amazonas, a juíza federal Jaiza Fraxe
registrou a importância histórica do momento – o primeiro protocolo construído
por meio de um processo judicial – e destacou que o documento registra, para a
posteridade, a voz do povo Mura. “Por mais que nenhum de nós esteja mais aqui
daqui a 30 anos, este protocolo permanece. A Justiça Federal está muito feliz
com a presença dos senhores e com a realização deste momento”, disse.
Entenda o caso – O MPF
passou a acompanhar o caso depois de receber informações de que a empresa
Potássio do Brasil Ltda. começou a realizar estudos e procedimentos na região sem
qualquer consulta às comunidades. Em julho de 2016, o órgão expediu
recomendação ao Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), para que
cancelasse a licença já expedida, e à Potássio do Brasil, para que suspendesse
as atividades de pesquisa na região até a realização das consultas nos moldes
previstos na legislação. Nenhum dos pedidos foi atendido. A concordância em
realizar as consultas nos moldes previstos pela Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) só veio após o MPF levar o caso à Justiça.
Com a assinatura do acordo em
março de 2017, o licenciamento foi suspenso para que as comunidades envolvidas
pudessem se manifestar livremente, conforme protocolo definido pelos próprios
comunitários. O acordo previa ainda proibição à Potássio do Brasil Ltda. de
buscar contato com membros das aldeias e comunidades ribeirinhas da região,
mediante qualquer processo de convencimento ou de cooptação de lideranças e
membros dos grupos.
Atropelo de etapas
A apuração que resultou na ação
do MPF constatou que, desde 2009, vinham sendo realizadas pesquisas de campo,
autorizadas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), para a
identificação das jazidas dentro da terra indígena Jauary, sem que fossem
consultadas as comunidades atingidas. O estudo de impacto ambiental do
empreendimento classificou o porte de empreendimento como “excepcional” e
afirma ser “muito alta” a interferência nos referenciais socioespaciais e
culturais nas comunidades tradicionais e indígenas da região.
Na ação que deu origem ao acordo,
o MPF sustenta que houve atropelo das normas e etapas legais, tanto nas
irregularidades na expedição de licença prévia pelo Ipaam, quanto na não
realização da consulta prévia aos indígenas. O termo de referência para a realização
do Estudo do Componente Indígena foi emitido em maio de 2015 pela Funai e o
Ipaam concedeu a licença prévia ao empreendimento em julho do mesmo ano, sem
que o estudo fosse efetivamente realizado, incluindo-o como uma condicionante
ao licenciamento ambiental. Para o MPF, tal fato, por si só, configura grave
distorção ao processo de licenciamento ambiental e a ausência de consulta nos
moldes da Convenção nº 169 da OIT fere diretamente o direito à autodeterminação
dos povos indígenas.
Uma nova audiência sobre o
processo foi marcada para o próximo dia 16 de setembro. Até lá, as partes
envolvidas poderão analisar o protocolo de consulta apresentado pelos indígenas
para se manifestar sobre o documento, não cabendo a nenhuma outra parte que não
os indígenas alterá-lo, uma vez que a Justiça adotou o princípio da vinculação
ao protocolo.
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